Cristiane Bouger. ©Umwelt Studio

Esta edição online é um desdobramento e uma versão estendida da edição impressa. Mais do que uma reprodução do conteúdo impresso, o website possibilita aprofundar a relação com o trabalho de cada um destes artistas através do acesso a arquivos de mídia que o papel não comporta.

Para fazer jus a este número da revista Abrigo Portátil, optei por não tomar a performance como objeto de estudo. Neste sentido, esta não é uma revista com artigos, críticas e ensaios teóricos sobre o campo da performance, mas uma edição que atua como fio condutor de um fluxo de discursos em primeira pessoa, confluindo artistas que aceitaram o convite para utilizar estas páginas como plataforma para os seus trabalhos e experiências.

Refletir sobre A Política do Corpo/A Política da Percepção foi o meu ponto de partida no diálogo com o trabalho destes artistas. Corpo e percepção são variáveis intercambiáveis nesta proposição, mas corpo remete imediatamente à fisicalidade, à vulnerabilidade e resistência objetivas da carne, enquanto a palavra percepção evoca subjetividade e, inevitavelmente, a leitura do outro e de tudo o que nos é externo.

 

Os trabalhos aqui apresentados oxigenam potencialidades. As páginas a seguir nos apresentam formas bastante específicas de percepcionar os corpos e suas realidades políticas, suas dissidências, (in)visibilidades, sua materialidade objetiva, seu legado e visões para o futuro. Neste fluxo de discursos, podemos perceber a relação com a memória, o intercâmbio da biografia com a ficção, o discurso de apropriação e a construção de terminologias. Analisadas no contexto de cada trabalho, todas estas manifestações são opções políticas em si, e nos apontam caminhos para pensar o corpo e a performance no século XXI.

Lynn Book, com influências vindas da teoria crítica e do feminismo, mas também ecoando experimentos da poesia futurista e dadaísta, reescreve a linguagem ampliando a sua potencialidade semântica. Gómez-Peña e La Pocha Nostra, com influências do pós-colonialismo,  apresentam o seu anti-manifesto multilíngue, em que as culturas indígenas das Américas, as questões de gênero e o repúdio aos crimes ambientais, ao mainstream americano e à violência, são apenas alguns do tópicos referidos. A performance e o performer são, aqui, o corpo contestatório e a via de transformação.

 

Laura Lima, na contracorrente da subjetividade e da abertura para interpretações, nos apontará a objetividade da carnalidade como base do seu trabalho. Na transcrição de suas instruções, a lucidez e o pragmatismo da artista na construção de suas imagens delimita o contorno e a especificidade no tratamento da execução da sua obra. É importante notar que Laura Lima recusa o estrangeirismo do termo performance. Aqui o corpo é carne, matéria entre as demais matérias.

 

Neil Harbisson, artista e ativista ciborgue que traduz frequências de luz em vibrações sonoras como meio de distinguir as cores, nos abre um universo de possibilidades ao pensar e vivenciar o uso da cibernética para introduzir novos sentidos ao corpo humano, e expandir a sua capacidade de percepcionar o mundo.

"A história do corpo negro inserido em contextos sociopolíticos específicos e reiterado no tempo cronológico de sua existência, cria uma narrativa que nos aproxima da oralidade e do depoimento policial, criando uma forma contestatória—mas, no entanto, não menos sensível—de crítica social."

Antonio Vega Macotela nos apresenta a Enciclopédia Invisível, que é composta por uma série de impressões de objetos feitas com o suor coletado dos corpos dos participantes que registram, assim, o símbolo do seu legado. As impressões a partir do suor “invisível” só podem ser vistas com luz ultravioleta. Ao observarmos esse legado, pensamos sobre a trajetória e as interações com os participantes do trabalho—sujeitos/tema e material do artista. Em Macotela, como na arte de conduta, de Paulo Nazareth, verificamos o alargamento da vivência do artista, possibilitando-nos pensar em relações mais abrangentes para a performance.

 

Paulo Nazareth com “todas as vezes que sou parado tomado como bandido…” estabelece relações entre memória, biografia e imagens fotográficas sem identificação. A história do corpo negro inserido em contextos sociopolíticos específicos e reiterado no tempo cronológico de sua existência, cria uma narrativa que nos aproxima da oralidade e do depoimento policial, criando uma forma contestatória—mas, no entanto, não menos sensível—de crítica social.

Tania Bruguera nos fala sobre a relação do seu trabalho com a censura cubana e de como a sua experiência durante um interrogatório definiu a sua compreensão sobre o papel da arte com consequências políticas.              O trabalho de Bruguera se alicerça em conceitos como os da arte útil e da arte de conduta.

 

Em 2015, a artista fundou o Instituto Internacional para Artivismo Hannah Arendt, em Havana. Arendt, teórica política a quem Bruguera presta homenagem, escreveu, entre outros livros, Origens do Totalitarismo, publicado em 1951.

 

Eu espero que esta versão estendida da revista possa ser um espaço para a descoberta do trabalho dos artistas incríveis que compõem a edição Nº 5 da Abrigo Portátil.

 

 

Cristiane Bouger

Nova Iorque, inverno de 2016.

CRISTIANE BOUGER

 

Cristiane Bouger desenvolve o seu trabalho a partir da interseção entre a performance, vídeo, teatro, poesia e escrita crítica, com influências da filosofia, literatura, práticas faça-você-mesmo e do pós-punk. Através do seu trabalho interdisciplinar, busca provocar dissonâncias–seja através do deslocamento de significados ou da intensificação do signo–para incitar uma apreensão perceptiva diferenciada no observador. Seus trabalhos têm sido apresentados em circuitos independentes e institucionais no Brasil, Estados Unidos, Romênia, Espanha, França e África do Sul. Sua produção crítica tem sido publicada em livros, revistas e periódicos no Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Portugal. Em Nova York foi escritora convidada do Movement Research durante o Moving Dialogue Exchange (Nova York/Bucareste, 2010–2011); escritora residente da Performa Magazine (2012–2013), e artista residente do Movement Research (2012–2014).  www.cristianebouger.com

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